Estava uma manhã fresca de verão. A neblina ainda não se
desfizera nos habituais farrapos molhados que lhe costumavam acariciar o rosto,
as pessoas ainda não percorriam a praça central que acabava no molhe escuro
junto ao mar que afagava as pedras numa cantiga de embalar, os pescadores ainda
não tinham voltado, e o seu sono fugira-lhe de novo.
A vila de Peixelim era uma localidade afável.
A sua família chegara ali há 65 anos. O avô Antunes e a avó
Graciete construíram a casa de família a pulso, com a ajuda das pessoas da
terra; curiosamente o seu avô paterno também contribuíra para isso – o avô
Cardoso – e assentaram ali decididos a tirar o sustento da terra num sítio de
peixe. Felizmente as coisas haviam corrido bem e acumularam uma pequena
fortuna.
A casa dos Alva era a maior de Peixelim. Tinha de ser! Lá
viviam os avós maternos, os seus pais e ela. O resto da família afastara-se.
Os tios Albuquerque viviam bem, eram abastados, e não
ligavam à família.
O tio Afonso desposara a tia Laurinda em 1932...
A mãe sempre lhe dissera que aquele casamento fora orquestrado
pelo senhor Azeredo Albuquerque, pai do tio Afonso, que, receoso da ameaça que
a família Alva pudesse representar ao domínio que tinham sobre região,
resolvera juntar as duas famílias; e rematava com a afirmação de que a tia
Laurinda nunca fora feliz.
Ela não sabia nada dessas coisas, mas a verdade é que só em
1950 nascera o primo Rodrigo, quando a seu tio João já era pai desde 1933, e os
seus pais desde 1934, quando nascera Marta...
A sua irmã Marta teria hoje 36 anos, se fosse viva... 36
anos... A mesma idade que deveria ter a prima Maria Alva, filha do tio João e
tia Josefina.
Gostava muito da prima Maria Alva, mas não sabia muito da
vida dela. Só sabia que cada ano que passava ficava menos tempo em Peixelim.
Fora viver para Lisboa, após o falecimento dos pais, há dois anos...Voltava
sempre para as festas da vila em Agosto, mas no ano anterior ficara apenas uma
semana. Viria ela este ano?
Ela também gostaria de partir para Lisboa. Tentar a sorte
noutro lado... Peixelim era a sua terra, mas ali nada mais a esperava senão um
casamento, talvez infeliz...
Mas não tinha coragem de falar sobre isso com os pais.
Estava certa de que seria um choque para ambos e não queria dar-lhes esse
desgosto. Bastara-lhes o que acontecera com Marta... A irmã Marta que nunca
conhecera e que, mesmo assim, tanto lhe condicionava a existência...
Era frequente ser comparada com a irmã que morrera há 20
anos, afogada naquele mar que tão convidativo parecia.
Marta morrera com 16 anos de idade. Pensava-se que teria
sido tragada por uma onda traiçoeira ali mesmo, junto ao molhe, onde ela estava
naquele momento, numa manhã de mar alteroso.
Nunca ninguém lhe contara ao certo como acontecera. Não
conseguia imaginar tamanho temporal que arrastasse alguém dali. Já vira o mar
zangado muitas vezes e, mesmo nos piores dias, em que lançava os seus braços
sobre a terra, nunca vira neles força que levasse quem quer que fosse. Mas
também não sabia se fora dali, daquele sítio onde estava, e também já ouvira
histórias de grandes ondas que se formavam do nada, como se o mar tivesse
vontade própria. Talvez, por isso, tivesse pesadelos com Marta.
Não sabia se era psicológico, mas desde que fizera 16 anos
que sofria de insónias, e os pesadelos que tinha com Marta lutando contra as
águas eram a sua principal causa. Há 3 anos que frequentemente fazia aquela
caminhada, desde lá de cima da colina, onde estava a casa, descendo o empedrado
cinzento e íngreme até à praça principal, envolta pela bruma, enrolada num
xaile laranja e um lenço azul sobre a cabeça, parando a escassos centímetros do
molhe esperando que o mar lhe falasse de Marta – já que ninguém mais falava.
Chegava ali, fincava os pés no chão, e fechava os olhos para se deixar levar
pelo som calmante do mar, esperando que nessa melancolia esquecesse a angústia
que sentia sempre que aquele sonho mau a acordava.
Às vezes não sonhava. Havia noites em que dormia
profundamente, madrugadas em que não era despertada pelos gritos da irmã
entrecortados pelas goladas de água salgada que lhe invadiam as entranhas e lhe
enfraqueciam a força, enquanto a ouvia bradar por ela, no meio do som do
temporal – «Teresa!». Mas essas noites era raras; normalmente, acordava ainda
com a imagem de Marta a afundar-se devagar, como se navegasse para as
profundezas.
Talvez, por isso,
sempre que por força do pesadelo empreendia aquela caminhada até ao molhe,
temesse abrir os olhos, e temia abri-los, porque tinha o medo irracional de ver
o corpo sem vida da sua irmã vir à tona, como se ela a espreitasse do além.
O primo Rodrigo também deveria voltar de Lisboa para as
festas. Quisera deus que, mesmo sendo um Albuquerque, mantivesse as relações
com a família. Gostava muito de falar com ele!
A mãe não apreciava muito aquela amizade, e o tio Afonso nem
a imaginava.
O avô Antunes, por seu lado, encorajava-os a continuarem a
dar-se.
Coitado, do avô. Com 78 anos ainda não perdera a esperança
de ver o nome da fábrica de conservas alterado para Albuquerque & Alva Conservas,
e deveria ver em Rodrigo a última hipótese...
Quando Marta morrera daquela forma trágica, o tio Afonso,
talvez comovido pela desgraça, acomodara toda a família da tia Laurinda na
fábrica, e atribuíra-lhe cargos de responsabilidade. Mas o nome mantivera-se
Azeredo Conservas.
Contudo, Rodrigo estava a estudar para advogado, e não
parecia interessado nos negócios do pai. Seria uma vã esperança, a do avô.
Esperava que Maria Alva também viesse. Haviam conversas que
apenas poderia ter com a prima. Talvez ela lhe pudesse falar de Marta. Elas
deviam ter sido íntimas... Com idades tão próximas...
Tinha saudades da prima, daquelas tardes na esplanada do
Tibúrcio a beber refrescos e batidos, a conversar de trivialidades; ou a
desconversar, como tão bem fazia a prima quando o assunto se tornava mais
pesado. Às vezes sentia-se só…
Os tios Albuquerque apenas os conhecia de vista, já não
tinha avós paternos, não tinha namorado, porque os pais não a autorizavam a
namorar... Até havia um rapaz por quem tinha um fraquinho; mas era pescador…
Não discutia esses assuntos. Já desistira! Um dia
lembrara-lhes que Maria Alva era filha de uma pescadora e os pais limitaram-se
a desviar o olhar como se tivesse dito uma blasfémia, ou como se fosse por isso
que Maria Alva fora forçada a partir. Nessa altura apetecera-lhe gritar que a
prima partira porque era livre, porque estavam em 1970 e as mulheres deviam ter
o direito de escolher o seu próprio caminho... Mas o mais certo era apanhar uma
valente bofetada e ser proibida de sair. Não valeria a pena tamanho castigo,
apenas para dar voz à rebeldia.
O sino da igreja começara a tocar para a missa. A neblina ia
dissipando-se suavemente e ao longe já se viam os barcos de pesca a voltarem.
Estava na altura de regressar à casa. Estava certa de que
ainda ninguém se levantara. Ao Domingo apenas iam à igreja às 10 horas.
Misturando-se com as gentes de Peixelim que saíam em
direcção à igreja para a missa das sete, no cimo da colina, num ritual que
repetia há 3 anos, sabia que vestida daquela forma ninguém a tomaria por Teresa
Alva Cardoso, garantido que a sua reputação de menina de família se manteria
intocada, assim como a seriedade dos Alva.
As festas começariam no dia seguinte...
Seria tão bom se Maria Alva viesse...
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